sábado, 19 de setembro de 2009

De Lisboa ao Cairo (Parte I)


Deixamos Lisboa. Iniciamos a nossa viagem para o Egipto, viagem que acalentei na alma, com entusiasmo juvenil.

As primeiras e as últimas impressões desta viagem são compartimentadas nas alas do meu coração com o desaguar natural da concretização lúdica dos livros da minha juventude na realidade tórrida do deserto e na fresquíssima espinha dorsal do Egipto que é o rio Nilo.

Assim, desassombrado e desassossegado nas recordações de criança deixo-me enlear pelos passos dados na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa onde cursei Arqueologia e onde o meu fascínio pelo Antigo Egipto se agigantou – qual estátua de Amon-Rá debruçando a sua sombra sob os devotos súbditos que a erigiram.

Debruçado eu sobre a janela no Aeroporto da Portela, prevejo o significado desta viagem porvir no signo incrustado na imponente cauda do Boieng 747-400 da Egyptair: é um falcão estilizado em listas (de um azul mais oceano que lazúli) representando Hórus, o Deus-Sol, filho de Ísis e Osíris e figura protectora representada nas estátuas velando com as suas asas por cima das cabeças dos faraós mais insignes do Egipto.

Subliminarmente, a viagem prometia o ouro que seria.

Neste momento se desvendaria na realidade a mentira de alguns mitos criados à volta das viagens do nosso país para terras egípcias... que não existem voos directos para o Egipto... que a Epyptair não está autorizada a voar em espaço aéreo europeu...

Há sim. E aquele pássaro autorizado pousou horas depois – seis horas e meia depois – no Aeroporto da cidade do Cairo, sem que possa passar em claro pelos olhos as lindíssimas morenas e hospedeiras de olhos melosamente castanhos e exoticamente rasgados e pelos ouvidos as primeiras cantilenas arranhadas em egípcio, soando das colunas do aparelho... Mais parecia que ameaçavam suavemente todos os passageiros com um rapto pirateado... Mas logo a tradução - num inglês macarrónico – nos acalmava lembrando a temperatura que deixávamos (uns tristes 18 graus) e a que iríamos encontrar (uns tórridos 35 graus) quando aterrássemos no Cairo. Por entre indicações básicas de voo e as boas-vindas habituais, partimos naquele pássaro decorado interiormente por uma douradas asas que viríamos a reconhecer tempos depois nos tectos de quase todos os templos que visitaríamos em solo egípcio.

Largamos a longa mas confortável viagem. Assomamos à porta do avião e logo um bafo imensamente quente se abraça a nós, desde a pista do Aeroporto Internacional do Cairo.

Tempo somente de gozarmos o ar condicionado e a casa-de-banho do terminal, já nos víamos entrados de novo num avião, para o próximo destino... após percorrermos as placas e os corredores necessários e aparentemente labirínticos e nos certificarmos que as bagagens seguiriam connosco (por pressentimento, lembrei-me das bagagens e por intuição evitei que ficassem no Cairo...).

A caminho de Luxor, lá se voou uma horinha num Embraer doméstico, abanando e solavancando mais - agora que já não víamos o Mediterrâneo sob os nossos pés e sobrevoávamos essencialmente os ares quentes do deserto.

Nesta hora de interregno – as viagens para longínquas partes do planeta têm estes inconvenientes: a distância e o facto de, dolorosamente, termos de a percorrer -, aproveito para explicar que se podem escolher vários tipos de viagem ao Egipto: a do Egipto de veraneio; a do Egipto das cidades; a do Egipto Histórico.

O Egipto de veraneio consiste no demolho dos nossos exauridos corpos sedentos de sol e praia numa das costas mais apreciadas a nível mundial: as praias do Mar Vermelho.

Hurgada, El Gouna, Makady e Soma Bay ou Marsa Alam (na costa ocidental) ou Sharm El Sheik (na costa oriental). É só escolher entre águas cristalinas e belíssimos recifes de coral. Entre revigorantes desportos náuticos e aventurosas excursões no deserto. Entre entrelaçadas lagoas artificiais em deslumbrantes estâncias balneares e o avistamento marítimo dos calmos e inteligentes golfinhos. Entre o mergulho e o snorkeling.

Se for acompanhado de uma belíssima mulher e muito mel, chegou a um dos paraísos à face da Terra à beira-mar plantado.

O Egipto das cidades guarda o Cairo e Alexandria como pedras gigantes preciosas e, se bem pensada, a viagem até pode conseguir incluir uma visita a Jerusalém. Os citadinos puros poderão desfrutar de uma mega metrópole africana à mão de semear com a confusão, hiperactividade e trânsito característicos das grandes cidades. Perder-se-ão de certo pela noite cairota no meio de espectáculos de dança do ventre e afogarão as bebidas nocturnas em fervilhantes compras no Bazar de Khan El Khalili. Passearão em busca do verdadeiro Cairo das avenidas, ruas e ruelas, numa aventura inesquecível, estranha e exótica.

Como facilmente trocaria estas maravilhas (apesar de tudo do século XXI), pelos encantos longínquos mas ainda perenes do Egipto Ancestral e como para mim as melhores realidades são as imaginadas, entreguei-me quase totalmente aos mistérios, histórias, mitos, lendas e estórias do Antigo, muito antigo, Egipto.

Deslumbrei-me nos Templos de Luxor, Karnak, Edfú, Kom Ombo e Abu Simbel. Perdi-me nos corredores do Museu do Cairo e nas ruinhas do Bairro Copto. Dobrei o pescoço ao admirar o topo das Pirâmides em Gizé. E, ao percorrer com o olhar a cauda e o nariz derrubado da Esfinge recordei as imagens belas que guardarei para sempre na minha memória até percorrer o meu próprio Vale dos Reis.

Muitas outras coisas tenho para vos contar. A nossa viagem apenas começou.



O nosso sonho, na realidade, teve início em Luxor, mais precisamente num dos vários cais de embarque que esta cidade histórica tem, onde estava atracado o “El Shams”, o nosso navio-cruzeiro, que nos embalaria nos próximos quatro maravilhosos dias.

Escrevo “embalaria” porque o rio Nilo é calmíssimo (incomparavelmente mais calmo que atravessar o rio Tejo num cacilheiro ou o rio Douro pelos socalcos vinícolas) e o “El Shams” – “O Sol” em egípcio – nunca nos atraiçoou com agitações ou embates violentos nas águas e sempre nos sentimos dentro de um verdadeiro hotel no seu interior.

Logo entrados no sólido navio (que de fora não nos parecera tão acolhedor) e acabados de destilar suores no aeroporto e na breve espera do mini-autocarro que nos levaria ao porto, descobrimos a suave distensão de nos levarem os passaportes (ficariam à guarda da tripulação do navio), nos livrarem das malas (que nos carregaram para os quartos no 1º piso), nos brindarem com uma bebida (um chá em tons vermelhos, sensaborão, que dai em diante sempre recusámos – embora nos fosse sistematicamente oferecido) e com um ar condicionado espectacularmente ocidental. Já era a nossa casa.

O interior do barco era luxuosíssimo, altamente ornamentado, com papel de parede e mobiliário requintadíssimos em tons grená e dourado e com madeiras muito trabalhadas, embora, se vistas ao pormenor, não ousassem a tentativa da qualidade perfeita. Muito acolhedor e confortável, o mobiliário lembrava-me as cadeiras e as poltronas de casa dos meus avós e fazia-me sentir acolhido e caseiro. Estava preparado para ser egípcio.

Mais preparado fiquei, quando ao chegar (ainda não tínhamos almoçado – eram três da tarde e saíramos de Lisboa por volta das duas da madrugada), o guia egípcio – Sahid de seu nome – nos ofereceu o almoço (que não constava do nosso pacote): a comida era condimentada, com bastante picante, cominhos e outras especiarias e gulosamente regada com azeite. O pão era acachapado – como costuma em terras muçulmanas norte-africanas -, com um travo evidente a canela que muito apreciei e pude repetir todos os dias do cruzeiro. Delícias de sabores e condimentos que somados à fome ainda souberam melhor e disfarçaram o prato simples que era: frango (estranha e egipciamente misturado com uns saborosíssimos filetes panados de peixe). Lembrei os condimentos e forma de cozinhar eminentemente angolanos da minha querida mãe e quase que fechava os olhos... inebriado. Não há prazer como uma boa refeição. Sorria para a minha mulher, de orelha-a-orelha.

Tudo isto após conhecermos resumidamente o nosso quarto. Pequeno (não mais que uma cabine dupla com casa-de-banho privativa), mas suficiente para conter uma cómoda, um armário, uma mesa de cabeceira, duas camas largas e confortáveis, uma mesa, duas cadeiras, uma televisão e uma magnífica poltrona virada para a janela e para o... formosíssimo rio Nilo. Depois de abrirmos as cortinas por sobre a água, aquele quarto atingia proporções gigantescas e palacianas. O nosso olhar derramou-se languidamente sobre as margens quentes e paradisíacas: pensei que poderia morrer ali, que teria valido a pena.

Abandonámos o navio após a retemperadora refeição e dirigimo-nos para a nossa primeira visita a solo egípcio (excluindo terminais, portos e aeroportos).

Atravessávamos numa pequena camioneta (tipo Toyota Hiace) as ruas de Luxor. Finalmente.

O nome actual desta cidade deriva do árabe “Al Cosur”, que significa “os palácios”. E alberga a capital do Império Novo: Tebas.

O Império Novo é um dos três períodos históricos do Egipto unificado sob o comando de um único soberano. Compreendido entre cerca de 1552 e 1069 A.C. é o mais recente da riquíssima história dos faraós egípcios mais poderosos e perenes. Entre eles encontram-se os faraós Amósis (o primeiro de muitos reis-soldado, com um cunho eminentemente expansionista), Amenófis III (cujo reinado significa o apogeu e o domínio calmo egípcio sobre os restantes povos da região, após inúmeras incursões dos seus antecessores) Tutankamón (para a posteridade, o mais sortudo dos faraós) Ramsés II (o mais perene e ainda hoje mais poderoso faraó, pela sua impressionante vida e obra) e a singular rainha-faraó Hatsepshut.

Tebas, cidade antiga, mais que a capital do Egipto em períodos importantes da história do país, é a Cidade de Amon, o rei dos Deuses egípcios – para bem-entender, Zeus ou Júpiter seriam seus homólogos ocidentais. E tal significa que estar em Tebas é estar muito perto da divindade.

E se a morada do Pai dos Deuses das antigas Roma e Atenas se situava algures entre as nuvens, bem acima das cabeças dos cidadãos, aqui o Olimpo de Amon eram os sumptuosos templos erigidos inebriadamente em sua honra. Bem no seu interior moravam os próprios Deuses, crendo-se que se fundiam nas estátuas de ouro ou prata que imponentes ocupavam o Sagrado dos Sagrados, o nome dado ao santuário último da morada, local só acessível aos sacerdotes ou ao próprio faraó.





O Templo de Luxor, construído ao longo da 18ª dinastia, era uma das moradas de Amon e foi mandado erigir por Amenófis II. Chegados ao átrio, sentimos que finalmente começamos a vivenciar as emoções porque tanto ansiámos. Os pilões – as duas torres em forma de trapézio onde se evidenciam enormes baixos-relevos que retratam deuses e faraós - ladeiam possantemente a entrada do Templo. À frente de cada uma senta-se um enorme colosso, numa simetria soberba.

Antes de entrar, reparamos que essa simetria é abalada verticalmente por um colossal obelisco que, perfeitamente ornamentado de perfeitíssimos hieróglifos, transpõe a altura dos dois pilões, já de si monumentais. Cada obelisco, pedra inconsútil em forma de menir pontiagudo e rectilíneo, que tenha dimensões desta natureza terá perto das 900 toneladas, senão mais. Alguns Obeliscos egípcios chegam a ter mais de 30 metros de comprimento.

Já assombrados, decidimos entrar no Templo (rasgam-nos os bilhetes ou perfuram-nos, com um furador de escritório), para continuarmos derretendo ao sol abrasador, mas retirando um proveito inigualável e único desse suor em que nos liquefazemos.

O Templo de Luxor estende-se desde a sua entrada por um corredor quase perfeitamente recto, como uma passadeira por onde vamos descobrindo sete salas, em regra cada vez mais pequenas e cada vez mais ocultas e sombrias. A ideia antiga era mesmo essa. O oculto revelava-se nas sombras e só não temos uma ideia mais precisa porque a maior parte do Templo de hoje não tem tecto.

Primeiro atravessamos o Átrio de Ramsés II. É um espaço amplo e rodeado de colunas, do Templo de Tutmósis I e de várias estátuas lindíssimas e muito bem conservadas.

Avançamos mais estreitamente e somos obrigados a olhar para cima. A Colunata de Amenófis III é talvez a imagem mais emblemática do Templo de Luxor depois do átrio, à entrada do templo. Embora sejam apenas duas filas de colunas, estas são descomunais. Tão altas que nos sentimos demasiado pequenos naquele espaço. Só três pessoas dariam para abraçar uma daquelas colunas.

Após este espectáculo, vislumbro uma imensidão de turistas que se maravilham e atravessam aquela colunata em direcção a outra sala.

A partir daí as salas sucedem-se, tendo à cabeça o amplo e belo Átrio de Amenófis III, seguindo-se uma sala repleta de colunas sempre dispostas em simetria e sempre grandiosas. Percorrendo o resto do templo passamos pela Sala hipostila e pelo Santuário da Barca antes de chegarmos ao Santuário propriamente dito. A dimensão e o trabalho de cada estátua e cada parede (hieroglificamente ornamentada) impressiona.

Só começo a ter pena de tudo isto não ter as cores originais, que se adivinham e, apesar de tudo, se vislumbram aqui e ali – quais pinceladas de luz sobre as paredes e tecto.

Saímos do Templo e atravessando o átrio à sua entrada, descobrimos um corredor muito grande que aponta em linha recta para o interior do templo, como uma estrada que ali desemboca. Somos informados que de facto se trata de uma estrada, que antigamente tinha cerca de três quilómetros e ligava directamente o Templo de Luxor ao Templo de Karnak. Era na realidade, a estrada onde decorriam as procissões nas antigas festividades em honra de Amon. Imaginamos aquela (agora) parcial avenida toda iluminada e atravessada pelas barcas onde se faziam transportar as estátuas dos deuses e os próprios faraós. A estrada é no fundo um corredor iniciático onde duas filas de grandes esfinges ocupam todo aquele percurso, viradas para a estrada na sua tranquilidade inabalável a pouquíssima distância umas das outras. Deveriam ser milhares de esfinges... E se só estas cerca de cem estátuas nos fazem respeitosamente silenciar, imagine-se três quilómetros...

Infelizmente não foi pelo corredor (já em grande parte destruído ou mesmo desaparecido) que chegámos, ao fim da tarde, ao Templo de Karnak, mas sim depois de atravessar um corredor imenso de comerciantes que nos “assaltavam” com vendas regateadas e depois de mais um passeio de Toyota por Luxor.


Uma nova avenida de grandes e lindíssimas esfinges (desta feita com cabeça de carneiro – uma das representações mais comuns do deus Amon), guia-nos para dentro do Templo de Karnak.
O Templo de Karnak (ou Carnaque) é uma espécie de santuário nacional, ao qual todos os faraós (e mesmo soberanos de outros períodos históricos – gregos, romanos...) acrescentavam as suas capelas, salas, átrios, doações edificadas e personalizadas em honra do divino Amon.

Destacam-se as Capelas (Branca de Sesóstris I e a Vermelha de Hatsepshut) onde a barca parava obrigatoriamente durante as procissões e onde podemos reparar em figuras de Osíris, representado com um falo (era a única divindade a par de Min, deus na fertilidade, com esse atributo) e de Sechat, deusa da escrita e da medida.

Nas paredes do templo, destacam-se os relevos de Tutmósis I, castigando uma mão-cheia de inimigos, com a aprovação e o beneplácito divino retratados e no seu complexo destacam-se três obeliscos (dois deles mandados transportar e elevar pela rainha Hatsepshut). Um deles apresenta-se seccionado. Detalhada e completamente ornamentado de pequenos baixos-relevos, está deitado e imagina-se colossal, se estivesse inteiro e erguido.

O vasto templo de Karnak, iniciou modesto, mandado construir por Sesóstris I (faraó da 12ª dinastia, ainda no Império Médio, em cerca de 1944 A.C.). Mas acaba aos nossos olhos como um dos mais belos e grandiosos, continuamente ampliado pelos faraós da 18ª dinastia. É o Deus Amon em todo o seu esplendor. Dez pilões, uma verdadeira floresta de colunas. Ao todo, são cento e trinta e quatro! Algumas delas monstruosas, numa sala onde há mais colunas que chão à volta delas, levam-nos a seguir, aos zigue-zagues, sem parar de nos admirarmos, numa viagem de minutos, sem saber onde fica mais alguma estrutura ou sítio que não sejam colunas larguíssimas e esmagadoras. Mais de mil esfinges. Não digo mais.

Só ouso que continuem a imaginar, isto tudo com tecto, pintado de azul, com milhões de estrelas amarelas esculpidas, desenhadas e decoradas à mão... Falcões estendiam as suas asas no tecto acompanhando desse modo todos os visitantes. Todas as colunas são encimadas com gigantescos lótus e papiros, as duas plantas heráldicas do Egipto.

Deixamos Karnak em direcção ao navio onde nos recebem com toalhas brancas enroladas e húmidas com as quais pudemos refrescar o rosto, as mãos e os braços e com uma limonada quente que se destina a retirar a sede.

Jantamos principescamente depois de um duche retemperador e decidimos dormir. O dia foi longo e os nossos sentidos estavam exauridos, mas expectantes pela próxima jornada...

Bruno Pestana
Julho 2009
Luxor, Egipto

1 comentário:

  1. Estou... sem palavras. Sem conseguir reagir a este magnífico relato. Estou ainda embebida nas inúmeras imagens que me (nos) ofereces. Estou mergulhada no (vosso) suor e tentada em conhecer esses tons azúis e estrelas amarelas e o Rio Nilo e as esfinges e... e... e...
    Bruno: obrigada!! Prometo que irei ler o "2º dia", mas não agora. Agora vou sonhar nas tuas palavras e nos sorrisos que me proporcionaste.

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