sábado, 26 de setembro de 2009

De Lisboa ao Cairo (Parte I - 2º Dia)

Acordamos ao despertar do telefone da recepção. Banho e pequeno-almoço. Saída em direcção ao Vale dos Reis.

Sem nos apercebermos (talvez durante a noite) cruzámos o rio, abandonámos a margem oriental do rio Nilo e atracámos na margem contrária.

À medida que nos aproximamos a paisagem embrutece e seca. É já num deserto pedregoso que somos guiados para o meio de um desfiladeiro onde se esgueira uma estradita de alcatrão recente.

Chegámos a um dos locais arqueológicos mais conhecidos e importantes de todo o planeta: o Vale dos Reis é, apenas, o local onde, através de mais de cinco séculos, foram construídas as sepulturas para o repouso último de faraós e outros nobres egípcios.

Este complexo funerário encontra-se dividido em duas zonas. O vale ocidental e o vale oriental. Neste último estão guardados os mais importantes túmulos do recinto. Ao todo, trata-se de quase sete dezenas de tumbas. Entre elas podemos encontrar simples sepulturas escavadas na rocha e outras de complexidade maior, cujo auge se pode atribuir, com toda a certeza possível, à tumba dos filhos do faraó Ramsés II. Tendo mais de 120 câmaras, é uma construção com proporções gigantescas.

Mas voltemos à realidade desértica da nossa viagem... O imenso Vale dos Reis reduz-se, pela mão dos guias turísticos, a três visitas que passo a relatar:

Acabados de largar o pequeno centro de exposições permanentes do Vale dos Reis, onde moram a última sombra do Vale e as casas-de-banho, somos encaminhados para um mini-comboio (que faz lembrar o Jardim Zoológico de Lisboa) todo de cor branca. Este articulado guia-nos nas curvas do desfiladeiro até adivinharmos a entrada no restrito complexo das escavações (ainda e sempre em progresso). Não sendo autorizadas fotografias ou filmagens dos sepulcros, é aqui que somos intimados a deixar a câmara de filmar. Num compreensivo mas contrafeito gesto, trocamos a nossa câmara por uma ficha de plástico branco partido onde ressaltam dois “7” vermelhos. Para mim, o número “7” é um número mágico. Por isso foi com um sorriso que acabei a troca.

Subimos o Vale e soubemos que a visita contemplaria apenas a descida a três tumbas. Todas de semelhante aspecto exterior – um monte de gravilha grossa seccionada a certa altura por uma larga ombreira quadrangular de pedra que faz as vezes de arco de entrada – apresentam-se-nos rústicas e guardadas por polícias mais ou menos armados e guias egípcios que tentam sempre trocar uma explicaçãozinha por um euro.

As descidas pelos corredores funerários são todas elas íngremes e pautadas por estruturas de fortes ripas de madeira que nos permitem uma maior segurança. Ao descer, cruzamo-
-nos com outros visitantes, esbaforidos e com ar de exaustão... e apercebemo-nos rapidamente que as suas faces sofredoras se devem, não à desilusão do que acabam de ver, mas sim ao ar que se torna mais pesado à medida que se desce. Rarefeito e abafado, o oxigénio entra pelas narinas com maior dificuldade e apercebemo-nos pelo esforço que os pulmões afinal, esforçadamente, existem.

Entrementes, notamos que o corredor está iluminado com fracas lâmpadas e que os guardas expulsam um casal de turistas que ousou fotografar os túmulos sagrados, apreendendo a sua câmara fotográfica.

Após a descida entre as paredes vazias e rugosas do primeiro corredor, surgem outros de acesso às câmaras onde as escadas em madeira maciça de tons claros guiam os turistas dentro de corrimões seguros e sólidos.

Aqui, deliciemo-nos: estes corredores, tal como as várias câmaras - todas elas ainda em escavações - estão decorados muito intensamente. Essa intensidade é transmitida por três factores: a cor, a perfeição e a comparação.

O que ressalta à vista quando descemos são principalmente as cores. A paleta dos artífices do Antigo Egipto era, de facto, muito variada. As cores são imensas (com os azuis, castanhos, amarelos e vermelhos à cabeça), intensíssimas e muito vivas. A julgar pelo estado de conservação dos desenhos destas três tumbas, podia-se dizer que os artistas tinham acabado a sua pintura no dia anterior e aguardavam a nossa saída da câmara funerária para depositarem os restos mortais do seu faraó.

A perfeição do traço, a homogeneidade dos tons nas superfícies mais vastas e os variadíssimos pormenores nos baixos-relevos que servem de base aos acabamentos, revelam-nos a entrega dos artistas (de corpo e alma), a sua experiência e o seu rigor, que deixam adivinhar a disciplinada harmonia que se respirava (e sobretudo se transpirava no Antigo Egipto) entre as várias artes envolvidas nestes espantosos trabalhos.

Nestas telas protegidas pelos longos séculos subterrâneos e pelos longos metros que as apartam do exterior, estão representados os deuses (principalmente Osíris, deus da eternidade e Isís sua irmã e mulher, considerada a deusa-mãe, mas também seu filho Hórus, sustentando a dupla coroa do Alto e Baixo Egipto e Neferten, o deus do perfume, entre outros), os faraós, os seus inimigos, cenas do quotidiano e das actividades agrícolas nas margens do Nilo, as oferendas e as alusões à cerimónia da entrega ao descanso do corpo do defunto, à espera de uma nova vida para lá desta.

A comparação com os Templos de Luxor, permite-nos abordar as tumbas do vale com a boca aberta de espanto, tão grande é a diferença que faz ter nestas últimas a presença da cor que inunda as câmaras mais profundas e principalmente os verdadeiros painéis que circundam a agora vazia urna tumular de larga e pesada pedra, cujos sarcófagos e múmias que resistiram aos saques, residem sobretudo no Museu do Cairo.

Verdadeiramente boquiabertos abandonamos a última tumba não sem antes apanhar um razoável susto... A luz faltou. De tudo, de repente, víamos nada. De iluminados desenhos sagrados de cores abundantes, sentíamos agora o abandono do nosso corpo vivo à escuridão das trevas. Não nos excitou tanto quanto uma das mais dramáticas cenas de Indiana Jones, porque foi pouco o tempo de treva, entrecortado por muitas vozes de turistas e a lanterna providencial do guarda que nos guiou em direcção à saída.

Não abandonámos, igualmente, a tumba, sem que pudéssemos vislumbrar uma grande câmara toda a... meio dos trabalhos de pintura e decalque dos relevos. Alguns desenhos eram esboços. Outros linhas perfeitamente desenhadas, mas em bruto, que serviriam como guias para o trabalho da pedra. Estavam desenhadas a cor avermelhada as esquadrias e as linhas de perspectiva em que depois se enquadrariam os desenhos e se alinhariam as figuras. Tudo foi deixado por acabar, mas em várias fases, o que nos permitiu ter uma noção muito aproximada dos trabalhos que eram necessários realizar até a obra estar completa. Esta noção pareceu-nos verdadeiramente fascinante.

Ao sair das tumbas, o calor era imenso e éramos tentados por vendedores de garrafas de água e latas de Coca-Cola conservadas em abundante gelo.

A nossa visita terminara. Fomos levantar a câmara e o funcionário teve a amabilidade de nos filmar e ao Vale dos Reis. Na altura, apontava com mestria a câmara e parecia que iríamos ficar com uma gravação rara do Vale dos Reis. Puro engano: estou em condições de afirmar que se tratou do pior filme que tenho memória de ter visto. Rever aquelas imagens só nos dá para rir, de tão desenquadrado, sismicamente tremido e urgentemente corrido. Mais. Resulta evidente que poderíamos estar em qualquer outro lugar, com muito sol.

Já sem noção de estarmos a abandonar o sítio arqueológico sem ver cerca de 95% das tumbas descobertas no Vale e algo anestesiados, seguimos por uma estrada qualquer até desembocarmos no Deir-El-Bahari (O Mosteiro do Norte), o Templo da Rainha Hatsepshut - nome de espirro, como diria o meu professor de História e Cultura Pré-Clássicas na FLUL.

(Hoje sabemos, graças ao Google Earth, que aquele percurso significou apenas o contornar do Vale dos Reis, pois o Templo fica imediatamente nas suas traseiras.)

Hatsepshut foi a única mulher a governar o Antigo Egipto, enquanto verdadeiro faraó, pois tudo indica – a estatuária e o seu próprio templo o atestam – que se quis legitimar e fazer passar por um faraó, tendo os seus traços femininos dado muitas vezes lugar à aparência de um homem. Era aliás a única filha legítima do então falecido faraó Tutmósis I. Afastada da sucessão ao trono pelo simples facto de ser mulher, realizou um casamento de conveniência e legitimação muito comum no Antigo Egipto: casa com Tutmósis II, seu meio-irmão. Este morre jovem. O filho de Tutmósis II com uma segunda mulher sobe ao trono com oito anos. Hatsepshut assume-se como regente, mas logo afasta Tutmósis III e auto-proclama-se faraó. Apoiado pelos funcionários, o reinado da rainha-faraó termina, longos vinte anos depois, com o regresso dos militares e de Tutmósis III ao poder (que a rainha não havia eliminado).

Tutmósis III apressou-se a tentar apagar a memória da rainha, mas Hatsepshut deixou obra de monta pois dedicou o seu reinado, quase por inteiro, à reconstrução de um Egipto devastado pela sede de mais conquistas.

O Templo de Milhões de Anos, como também é conhecido o Templo de Hatsepshut é um modelo impar na arquitectura egípcia. Dedicado aos deuses Amon, Hathor, deusa do Amor e Anúbis, deus dos Mortos, foi edificado em ordem à concepção impar de Senenmut, ministro e provavelmente amante da rainha. Tal como o da rainha, o seu nome foi apagado da história por um longo período de mais de três mil anos.

O templo revela-se-nos belíssimo. Principalmente ao longe, nos seus três andares imponentes na sua suavidade. As rampas de acesso aos andares superiores vão-nos dando a conhecer um pouco da história de Hatsepshut e principalmente da sua legitimação, a partir de um episódio que retrata a sua própria concepção: Ahmose, mãe de Hatsepshut é possuída pelo deus Amon-Rá que toma a aparência de seu pai, Tutmósis I. Após a únião sexual, Amon revela a Ahmose que deste acto nascerá o futuro faraó que governará todo o Egipto.

Representada neste belo Templo está também uma expedição à região de Punt, algures nas costas da actual Eritreia. Hatsepshut ordenou esta expedição pacífica e comercial que permitiu ao Egipto importar diversas riquezas como incenso, ébano, marfim, animais exóticos, mirra e em troca fornecer armas e algumas jóias. Ainda hoje são recordadas as árvores de incenso que foram transportadas de Punt (eram regadas durante a longa viagem) e replantadas em frente ao Templo.

A caminho do navio, parámos para fotografar os hoje completamente desenquadrados e muito desgastados Colossos de Memnon.


Na realidade, estas colossais figuras humanas, que pesam cerca de 1300 toneladas, eram as guardiãs (representando o próprio faraó) do templo de Amen-Hotep III. Mas guardam o nome de um herói grego: Memnon, filho de Eos, deusa grega da aurora. Zeus, deus grego, concedera-lhe a imortalidade após a sua morte na homérica Guerra de Tróia. Na sua nova vida, todas as manhãs, Memnon chamava ou cantava por sua mãe. A estátua esquerda, após um sismo, todas as manhãs, emitia um silvo, que diziam ser esse chamamento eterno e cíclico. Até ao dia em que um imperador romano (como todos os imperadores romanos-desmancha-prazeres) restaurou a estátua e esta nunca mais cantou.

Este encanto que guarda a mitologia grega é diametralmente oposto ao desencanto que sentimos ao olharmos para estes gigantes. O templo, enorme, sumiu pela erosão e pela remoção de materiais para servir outras construções menores e com ele o encanto egípcio daquele local.

Uma coisa é certa. Se fosse para olhar aqueles blocos, ficaria em Lisboa a ver o Canal História.


Regressámos ao navio e jantámos a caminho da nossa próxima paragem: Edfú...
















Bruno Pestana
Julho 2009
Luxor, Egipto

sábado, 19 de setembro de 2009

De Lisboa ao Cairo (Parte I)


Deixamos Lisboa. Iniciamos a nossa viagem para o Egipto, viagem que acalentei na alma, com entusiasmo juvenil.

As primeiras e as últimas impressões desta viagem são compartimentadas nas alas do meu coração com o desaguar natural da concretização lúdica dos livros da minha juventude na realidade tórrida do deserto e na fresquíssima espinha dorsal do Egipto que é o rio Nilo.

Assim, desassombrado e desassossegado nas recordações de criança deixo-me enlear pelos passos dados na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa onde cursei Arqueologia e onde o meu fascínio pelo Antigo Egipto se agigantou – qual estátua de Amon-Rá debruçando a sua sombra sob os devotos súbditos que a erigiram.

Debruçado eu sobre a janela no Aeroporto da Portela, prevejo o significado desta viagem porvir no signo incrustado na imponente cauda do Boieng 747-400 da Egyptair: é um falcão estilizado em listas (de um azul mais oceano que lazúli) representando Hórus, o Deus-Sol, filho de Ísis e Osíris e figura protectora representada nas estátuas velando com as suas asas por cima das cabeças dos faraós mais insignes do Egipto.

Subliminarmente, a viagem prometia o ouro que seria.

Neste momento se desvendaria na realidade a mentira de alguns mitos criados à volta das viagens do nosso país para terras egípcias... que não existem voos directos para o Egipto... que a Epyptair não está autorizada a voar em espaço aéreo europeu...

Há sim. E aquele pássaro autorizado pousou horas depois – seis horas e meia depois – no Aeroporto da cidade do Cairo, sem que possa passar em claro pelos olhos as lindíssimas morenas e hospedeiras de olhos melosamente castanhos e exoticamente rasgados e pelos ouvidos as primeiras cantilenas arranhadas em egípcio, soando das colunas do aparelho... Mais parecia que ameaçavam suavemente todos os passageiros com um rapto pirateado... Mas logo a tradução - num inglês macarrónico – nos acalmava lembrando a temperatura que deixávamos (uns tristes 18 graus) e a que iríamos encontrar (uns tórridos 35 graus) quando aterrássemos no Cairo. Por entre indicações básicas de voo e as boas-vindas habituais, partimos naquele pássaro decorado interiormente por uma douradas asas que viríamos a reconhecer tempos depois nos tectos de quase todos os templos que visitaríamos em solo egípcio.

Largamos a longa mas confortável viagem. Assomamos à porta do avião e logo um bafo imensamente quente se abraça a nós, desde a pista do Aeroporto Internacional do Cairo.

Tempo somente de gozarmos o ar condicionado e a casa-de-banho do terminal, já nos víamos entrados de novo num avião, para o próximo destino... após percorrermos as placas e os corredores necessários e aparentemente labirínticos e nos certificarmos que as bagagens seguiriam connosco (por pressentimento, lembrei-me das bagagens e por intuição evitei que ficassem no Cairo...).

A caminho de Luxor, lá se voou uma horinha num Embraer doméstico, abanando e solavancando mais - agora que já não víamos o Mediterrâneo sob os nossos pés e sobrevoávamos essencialmente os ares quentes do deserto.

Nesta hora de interregno – as viagens para longínquas partes do planeta têm estes inconvenientes: a distância e o facto de, dolorosamente, termos de a percorrer -, aproveito para explicar que se podem escolher vários tipos de viagem ao Egipto: a do Egipto de veraneio; a do Egipto das cidades; a do Egipto Histórico.

O Egipto de veraneio consiste no demolho dos nossos exauridos corpos sedentos de sol e praia numa das costas mais apreciadas a nível mundial: as praias do Mar Vermelho.

Hurgada, El Gouna, Makady e Soma Bay ou Marsa Alam (na costa ocidental) ou Sharm El Sheik (na costa oriental). É só escolher entre águas cristalinas e belíssimos recifes de coral. Entre revigorantes desportos náuticos e aventurosas excursões no deserto. Entre entrelaçadas lagoas artificiais em deslumbrantes estâncias balneares e o avistamento marítimo dos calmos e inteligentes golfinhos. Entre o mergulho e o snorkeling.

Se for acompanhado de uma belíssima mulher e muito mel, chegou a um dos paraísos à face da Terra à beira-mar plantado.

O Egipto das cidades guarda o Cairo e Alexandria como pedras gigantes preciosas e, se bem pensada, a viagem até pode conseguir incluir uma visita a Jerusalém. Os citadinos puros poderão desfrutar de uma mega metrópole africana à mão de semear com a confusão, hiperactividade e trânsito característicos das grandes cidades. Perder-se-ão de certo pela noite cairota no meio de espectáculos de dança do ventre e afogarão as bebidas nocturnas em fervilhantes compras no Bazar de Khan El Khalili. Passearão em busca do verdadeiro Cairo das avenidas, ruas e ruelas, numa aventura inesquecível, estranha e exótica.

Como facilmente trocaria estas maravilhas (apesar de tudo do século XXI), pelos encantos longínquos mas ainda perenes do Egipto Ancestral e como para mim as melhores realidades são as imaginadas, entreguei-me quase totalmente aos mistérios, histórias, mitos, lendas e estórias do Antigo, muito antigo, Egipto.

Deslumbrei-me nos Templos de Luxor, Karnak, Edfú, Kom Ombo e Abu Simbel. Perdi-me nos corredores do Museu do Cairo e nas ruinhas do Bairro Copto. Dobrei o pescoço ao admirar o topo das Pirâmides em Gizé. E, ao percorrer com o olhar a cauda e o nariz derrubado da Esfinge recordei as imagens belas que guardarei para sempre na minha memória até percorrer o meu próprio Vale dos Reis.

Muitas outras coisas tenho para vos contar. A nossa viagem apenas começou.



O nosso sonho, na realidade, teve início em Luxor, mais precisamente num dos vários cais de embarque que esta cidade histórica tem, onde estava atracado o “El Shams”, o nosso navio-cruzeiro, que nos embalaria nos próximos quatro maravilhosos dias.

Escrevo “embalaria” porque o rio Nilo é calmíssimo (incomparavelmente mais calmo que atravessar o rio Tejo num cacilheiro ou o rio Douro pelos socalcos vinícolas) e o “El Shams” – “O Sol” em egípcio – nunca nos atraiçoou com agitações ou embates violentos nas águas e sempre nos sentimos dentro de um verdadeiro hotel no seu interior.

Logo entrados no sólido navio (que de fora não nos parecera tão acolhedor) e acabados de destilar suores no aeroporto e na breve espera do mini-autocarro que nos levaria ao porto, descobrimos a suave distensão de nos levarem os passaportes (ficariam à guarda da tripulação do navio), nos livrarem das malas (que nos carregaram para os quartos no 1º piso), nos brindarem com uma bebida (um chá em tons vermelhos, sensaborão, que dai em diante sempre recusámos – embora nos fosse sistematicamente oferecido) e com um ar condicionado espectacularmente ocidental. Já era a nossa casa.

O interior do barco era luxuosíssimo, altamente ornamentado, com papel de parede e mobiliário requintadíssimos em tons grená e dourado e com madeiras muito trabalhadas, embora, se vistas ao pormenor, não ousassem a tentativa da qualidade perfeita. Muito acolhedor e confortável, o mobiliário lembrava-me as cadeiras e as poltronas de casa dos meus avós e fazia-me sentir acolhido e caseiro. Estava preparado para ser egípcio.

Mais preparado fiquei, quando ao chegar (ainda não tínhamos almoçado – eram três da tarde e saíramos de Lisboa por volta das duas da madrugada), o guia egípcio – Sahid de seu nome – nos ofereceu o almoço (que não constava do nosso pacote): a comida era condimentada, com bastante picante, cominhos e outras especiarias e gulosamente regada com azeite. O pão era acachapado – como costuma em terras muçulmanas norte-africanas -, com um travo evidente a canela que muito apreciei e pude repetir todos os dias do cruzeiro. Delícias de sabores e condimentos que somados à fome ainda souberam melhor e disfarçaram o prato simples que era: frango (estranha e egipciamente misturado com uns saborosíssimos filetes panados de peixe). Lembrei os condimentos e forma de cozinhar eminentemente angolanos da minha querida mãe e quase que fechava os olhos... inebriado. Não há prazer como uma boa refeição. Sorria para a minha mulher, de orelha-a-orelha.

Tudo isto após conhecermos resumidamente o nosso quarto. Pequeno (não mais que uma cabine dupla com casa-de-banho privativa), mas suficiente para conter uma cómoda, um armário, uma mesa de cabeceira, duas camas largas e confortáveis, uma mesa, duas cadeiras, uma televisão e uma magnífica poltrona virada para a janela e para o... formosíssimo rio Nilo. Depois de abrirmos as cortinas por sobre a água, aquele quarto atingia proporções gigantescas e palacianas. O nosso olhar derramou-se languidamente sobre as margens quentes e paradisíacas: pensei que poderia morrer ali, que teria valido a pena.

Abandonámos o navio após a retemperadora refeição e dirigimo-nos para a nossa primeira visita a solo egípcio (excluindo terminais, portos e aeroportos).

Atravessávamos numa pequena camioneta (tipo Toyota Hiace) as ruas de Luxor. Finalmente.

O nome actual desta cidade deriva do árabe “Al Cosur”, que significa “os palácios”. E alberga a capital do Império Novo: Tebas.

O Império Novo é um dos três períodos históricos do Egipto unificado sob o comando de um único soberano. Compreendido entre cerca de 1552 e 1069 A.C. é o mais recente da riquíssima história dos faraós egípcios mais poderosos e perenes. Entre eles encontram-se os faraós Amósis (o primeiro de muitos reis-soldado, com um cunho eminentemente expansionista), Amenófis III (cujo reinado significa o apogeu e o domínio calmo egípcio sobre os restantes povos da região, após inúmeras incursões dos seus antecessores) Tutankamón (para a posteridade, o mais sortudo dos faraós) Ramsés II (o mais perene e ainda hoje mais poderoso faraó, pela sua impressionante vida e obra) e a singular rainha-faraó Hatsepshut.

Tebas, cidade antiga, mais que a capital do Egipto em períodos importantes da história do país, é a Cidade de Amon, o rei dos Deuses egípcios – para bem-entender, Zeus ou Júpiter seriam seus homólogos ocidentais. E tal significa que estar em Tebas é estar muito perto da divindade.

E se a morada do Pai dos Deuses das antigas Roma e Atenas se situava algures entre as nuvens, bem acima das cabeças dos cidadãos, aqui o Olimpo de Amon eram os sumptuosos templos erigidos inebriadamente em sua honra. Bem no seu interior moravam os próprios Deuses, crendo-se que se fundiam nas estátuas de ouro ou prata que imponentes ocupavam o Sagrado dos Sagrados, o nome dado ao santuário último da morada, local só acessível aos sacerdotes ou ao próprio faraó.





O Templo de Luxor, construído ao longo da 18ª dinastia, era uma das moradas de Amon e foi mandado erigir por Amenófis II. Chegados ao átrio, sentimos que finalmente começamos a vivenciar as emoções porque tanto ansiámos. Os pilões – as duas torres em forma de trapézio onde se evidenciam enormes baixos-relevos que retratam deuses e faraós - ladeiam possantemente a entrada do Templo. À frente de cada uma senta-se um enorme colosso, numa simetria soberba.

Antes de entrar, reparamos que essa simetria é abalada verticalmente por um colossal obelisco que, perfeitamente ornamentado de perfeitíssimos hieróglifos, transpõe a altura dos dois pilões, já de si monumentais. Cada obelisco, pedra inconsútil em forma de menir pontiagudo e rectilíneo, que tenha dimensões desta natureza terá perto das 900 toneladas, senão mais. Alguns Obeliscos egípcios chegam a ter mais de 30 metros de comprimento.

Já assombrados, decidimos entrar no Templo (rasgam-nos os bilhetes ou perfuram-nos, com um furador de escritório), para continuarmos derretendo ao sol abrasador, mas retirando um proveito inigualável e único desse suor em que nos liquefazemos.

O Templo de Luxor estende-se desde a sua entrada por um corredor quase perfeitamente recto, como uma passadeira por onde vamos descobrindo sete salas, em regra cada vez mais pequenas e cada vez mais ocultas e sombrias. A ideia antiga era mesmo essa. O oculto revelava-se nas sombras e só não temos uma ideia mais precisa porque a maior parte do Templo de hoje não tem tecto.

Primeiro atravessamos o Átrio de Ramsés II. É um espaço amplo e rodeado de colunas, do Templo de Tutmósis I e de várias estátuas lindíssimas e muito bem conservadas.

Avançamos mais estreitamente e somos obrigados a olhar para cima. A Colunata de Amenófis III é talvez a imagem mais emblemática do Templo de Luxor depois do átrio, à entrada do templo. Embora sejam apenas duas filas de colunas, estas são descomunais. Tão altas que nos sentimos demasiado pequenos naquele espaço. Só três pessoas dariam para abraçar uma daquelas colunas.

Após este espectáculo, vislumbro uma imensidão de turistas que se maravilham e atravessam aquela colunata em direcção a outra sala.

A partir daí as salas sucedem-se, tendo à cabeça o amplo e belo Átrio de Amenófis III, seguindo-se uma sala repleta de colunas sempre dispostas em simetria e sempre grandiosas. Percorrendo o resto do templo passamos pela Sala hipostila e pelo Santuário da Barca antes de chegarmos ao Santuário propriamente dito. A dimensão e o trabalho de cada estátua e cada parede (hieroglificamente ornamentada) impressiona.

Só começo a ter pena de tudo isto não ter as cores originais, que se adivinham e, apesar de tudo, se vislumbram aqui e ali – quais pinceladas de luz sobre as paredes e tecto.

Saímos do Templo e atravessando o átrio à sua entrada, descobrimos um corredor muito grande que aponta em linha recta para o interior do templo, como uma estrada que ali desemboca. Somos informados que de facto se trata de uma estrada, que antigamente tinha cerca de três quilómetros e ligava directamente o Templo de Luxor ao Templo de Karnak. Era na realidade, a estrada onde decorriam as procissões nas antigas festividades em honra de Amon. Imaginamos aquela (agora) parcial avenida toda iluminada e atravessada pelas barcas onde se faziam transportar as estátuas dos deuses e os próprios faraós. A estrada é no fundo um corredor iniciático onde duas filas de grandes esfinges ocupam todo aquele percurso, viradas para a estrada na sua tranquilidade inabalável a pouquíssima distância umas das outras. Deveriam ser milhares de esfinges... E se só estas cerca de cem estátuas nos fazem respeitosamente silenciar, imagine-se três quilómetros...

Infelizmente não foi pelo corredor (já em grande parte destruído ou mesmo desaparecido) que chegámos, ao fim da tarde, ao Templo de Karnak, mas sim depois de atravessar um corredor imenso de comerciantes que nos “assaltavam” com vendas regateadas e depois de mais um passeio de Toyota por Luxor.


Uma nova avenida de grandes e lindíssimas esfinges (desta feita com cabeça de carneiro – uma das representações mais comuns do deus Amon), guia-nos para dentro do Templo de Karnak.
O Templo de Karnak (ou Carnaque) é uma espécie de santuário nacional, ao qual todos os faraós (e mesmo soberanos de outros períodos históricos – gregos, romanos...) acrescentavam as suas capelas, salas, átrios, doações edificadas e personalizadas em honra do divino Amon.

Destacam-se as Capelas (Branca de Sesóstris I e a Vermelha de Hatsepshut) onde a barca parava obrigatoriamente durante as procissões e onde podemos reparar em figuras de Osíris, representado com um falo (era a única divindade a par de Min, deus na fertilidade, com esse atributo) e de Sechat, deusa da escrita e da medida.

Nas paredes do templo, destacam-se os relevos de Tutmósis I, castigando uma mão-cheia de inimigos, com a aprovação e o beneplácito divino retratados e no seu complexo destacam-se três obeliscos (dois deles mandados transportar e elevar pela rainha Hatsepshut). Um deles apresenta-se seccionado. Detalhada e completamente ornamentado de pequenos baixos-relevos, está deitado e imagina-se colossal, se estivesse inteiro e erguido.

O vasto templo de Karnak, iniciou modesto, mandado construir por Sesóstris I (faraó da 12ª dinastia, ainda no Império Médio, em cerca de 1944 A.C.). Mas acaba aos nossos olhos como um dos mais belos e grandiosos, continuamente ampliado pelos faraós da 18ª dinastia. É o Deus Amon em todo o seu esplendor. Dez pilões, uma verdadeira floresta de colunas. Ao todo, são cento e trinta e quatro! Algumas delas monstruosas, numa sala onde há mais colunas que chão à volta delas, levam-nos a seguir, aos zigue-zagues, sem parar de nos admirarmos, numa viagem de minutos, sem saber onde fica mais alguma estrutura ou sítio que não sejam colunas larguíssimas e esmagadoras. Mais de mil esfinges. Não digo mais.

Só ouso que continuem a imaginar, isto tudo com tecto, pintado de azul, com milhões de estrelas amarelas esculpidas, desenhadas e decoradas à mão... Falcões estendiam as suas asas no tecto acompanhando desse modo todos os visitantes. Todas as colunas são encimadas com gigantescos lótus e papiros, as duas plantas heráldicas do Egipto.

Deixamos Karnak em direcção ao navio onde nos recebem com toalhas brancas enroladas e húmidas com as quais pudemos refrescar o rosto, as mãos e os braços e com uma limonada quente que se destina a retirar a sede.

Jantamos principescamente depois de um duche retemperador e decidimos dormir. O dia foi longo e os nossos sentidos estavam exauridos, mas expectantes pela próxima jornada...

Bruno Pestana
Julho 2009
Luxor, Egipto