sábado, 26 de setembro de 2009

De Lisboa ao Cairo (Parte I - 2º Dia)

Acordamos ao despertar do telefone da recepção. Banho e pequeno-almoço. Saída em direcção ao Vale dos Reis.

Sem nos apercebermos (talvez durante a noite) cruzámos o rio, abandonámos a margem oriental do rio Nilo e atracámos na margem contrária.

À medida que nos aproximamos a paisagem embrutece e seca. É já num deserto pedregoso que somos guiados para o meio de um desfiladeiro onde se esgueira uma estradita de alcatrão recente.

Chegámos a um dos locais arqueológicos mais conhecidos e importantes de todo o planeta: o Vale dos Reis é, apenas, o local onde, através de mais de cinco séculos, foram construídas as sepulturas para o repouso último de faraós e outros nobres egípcios.

Este complexo funerário encontra-se dividido em duas zonas. O vale ocidental e o vale oriental. Neste último estão guardados os mais importantes túmulos do recinto. Ao todo, trata-se de quase sete dezenas de tumbas. Entre elas podemos encontrar simples sepulturas escavadas na rocha e outras de complexidade maior, cujo auge se pode atribuir, com toda a certeza possível, à tumba dos filhos do faraó Ramsés II. Tendo mais de 120 câmaras, é uma construção com proporções gigantescas.

Mas voltemos à realidade desértica da nossa viagem... O imenso Vale dos Reis reduz-se, pela mão dos guias turísticos, a três visitas que passo a relatar:

Acabados de largar o pequeno centro de exposições permanentes do Vale dos Reis, onde moram a última sombra do Vale e as casas-de-banho, somos encaminhados para um mini-comboio (que faz lembrar o Jardim Zoológico de Lisboa) todo de cor branca. Este articulado guia-nos nas curvas do desfiladeiro até adivinharmos a entrada no restrito complexo das escavações (ainda e sempre em progresso). Não sendo autorizadas fotografias ou filmagens dos sepulcros, é aqui que somos intimados a deixar a câmara de filmar. Num compreensivo mas contrafeito gesto, trocamos a nossa câmara por uma ficha de plástico branco partido onde ressaltam dois “7” vermelhos. Para mim, o número “7” é um número mágico. Por isso foi com um sorriso que acabei a troca.

Subimos o Vale e soubemos que a visita contemplaria apenas a descida a três tumbas. Todas de semelhante aspecto exterior – um monte de gravilha grossa seccionada a certa altura por uma larga ombreira quadrangular de pedra que faz as vezes de arco de entrada – apresentam-se-nos rústicas e guardadas por polícias mais ou menos armados e guias egípcios que tentam sempre trocar uma explicaçãozinha por um euro.

As descidas pelos corredores funerários são todas elas íngremes e pautadas por estruturas de fortes ripas de madeira que nos permitem uma maior segurança. Ao descer, cruzamo-
-nos com outros visitantes, esbaforidos e com ar de exaustão... e apercebemo-nos rapidamente que as suas faces sofredoras se devem, não à desilusão do que acabam de ver, mas sim ao ar que se torna mais pesado à medida que se desce. Rarefeito e abafado, o oxigénio entra pelas narinas com maior dificuldade e apercebemo-nos pelo esforço que os pulmões afinal, esforçadamente, existem.

Entrementes, notamos que o corredor está iluminado com fracas lâmpadas e que os guardas expulsam um casal de turistas que ousou fotografar os túmulos sagrados, apreendendo a sua câmara fotográfica.

Após a descida entre as paredes vazias e rugosas do primeiro corredor, surgem outros de acesso às câmaras onde as escadas em madeira maciça de tons claros guiam os turistas dentro de corrimões seguros e sólidos.

Aqui, deliciemo-nos: estes corredores, tal como as várias câmaras - todas elas ainda em escavações - estão decorados muito intensamente. Essa intensidade é transmitida por três factores: a cor, a perfeição e a comparação.

O que ressalta à vista quando descemos são principalmente as cores. A paleta dos artífices do Antigo Egipto era, de facto, muito variada. As cores são imensas (com os azuis, castanhos, amarelos e vermelhos à cabeça), intensíssimas e muito vivas. A julgar pelo estado de conservação dos desenhos destas três tumbas, podia-se dizer que os artistas tinham acabado a sua pintura no dia anterior e aguardavam a nossa saída da câmara funerária para depositarem os restos mortais do seu faraó.

A perfeição do traço, a homogeneidade dos tons nas superfícies mais vastas e os variadíssimos pormenores nos baixos-relevos que servem de base aos acabamentos, revelam-nos a entrega dos artistas (de corpo e alma), a sua experiência e o seu rigor, que deixam adivinhar a disciplinada harmonia que se respirava (e sobretudo se transpirava no Antigo Egipto) entre as várias artes envolvidas nestes espantosos trabalhos.

Nestas telas protegidas pelos longos séculos subterrâneos e pelos longos metros que as apartam do exterior, estão representados os deuses (principalmente Osíris, deus da eternidade e Isís sua irmã e mulher, considerada a deusa-mãe, mas também seu filho Hórus, sustentando a dupla coroa do Alto e Baixo Egipto e Neferten, o deus do perfume, entre outros), os faraós, os seus inimigos, cenas do quotidiano e das actividades agrícolas nas margens do Nilo, as oferendas e as alusões à cerimónia da entrega ao descanso do corpo do defunto, à espera de uma nova vida para lá desta.

A comparação com os Templos de Luxor, permite-nos abordar as tumbas do vale com a boca aberta de espanto, tão grande é a diferença que faz ter nestas últimas a presença da cor que inunda as câmaras mais profundas e principalmente os verdadeiros painéis que circundam a agora vazia urna tumular de larga e pesada pedra, cujos sarcófagos e múmias que resistiram aos saques, residem sobretudo no Museu do Cairo.

Verdadeiramente boquiabertos abandonamos a última tumba não sem antes apanhar um razoável susto... A luz faltou. De tudo, de repente, víamos nada. De iluminados desenhos sagrados de cores abundantes, sentíamos agora o abandono do nosso corpo vivo à escuridão das trevas. Não nos excitou tanto quanto uma das mais dramáticas cenas de Indiana Jones, porque foi pouco o tempo de treva, entrecortado por muitas vozes de turistas e a lanterna providencial do guarda que nos guiou em direcção à saída.

Não abandonámos, igualmente, a tumba, sem que pudéssemos vislumbrar uma grande câmara toda a... meio dos trabalhos de pintura e decalque dos relevos. Alguns desenhos eram esboços. Outros linhas perfeitamente desenhadas, mas em bruto, que serviriam como guias para o trabalho da pedra. Estavam desenhadas a cor avermelhada as esquadrias e as linhas de perspectiva em que depois se enquadrariam os desenhos e se alinhariam as figuras. Tudo foi deixado por acabar, mas em várias fases, o que nos permitiu ter uma noção muito aproximada dos trabalhos que eram necessários realizar até a obra estar completa. Esta noção pareceu-nos verdadeiramente fascinante.

Ao sair das tumbas, o calor era imenso e éramos tentados por vendedores de garrafas de água e latas de Coca-Cola conservadas em abundante gelo.

A nossa visita terminara. Fomos levantar a câmara e o funcionário teve a amabilidade de nos filmar e ao Vale dos Reis. Na altura, apontava com mestria a câmara e parecia que iríamos ficar com uma gravação rara do Vale dos Reis. Puro engano: estou em condições de afirmar que se tratou do pior filme que tenho memória de ter visto. Rever aquelas imagens só nos dá para rir, de tão desenquadrado, sismicamente tremido e urgentemente corrido. Mais. Resulta evidente que poderíamos estar em qualquer outro lugar, com muito sol.

Já sem noção de estarmos a abandonar o sítio arqueológico sem ver cerca de 95% das tumbas descobertas no Vale e algo anestesiados, seguimos por uma estrada qualquer até desembocarmos no Deir-El-Bahari (O Mosteiro do Norte), o Templo da Rainha Hatsepshut - nome de espirro, como diria o meu professor de História e Cultura Pré-Clássicas na FLUL.

(Hoje sabemos, graças ao Google Earth, que aquele percurso significou apenas o contornar do Vale dos Reis, pois o Templo fica imediatamente nas suas traseiras.)

Hatsepshut foi a única mulher a governar o Antigo Egipto, enquanto verdadeiro faraó, pois tudo indica – a estatuária e o seu próprio templo o atestam – que se quis legitimar e fazer passar por um faraó, tendo os seus traços femininos dado muitas vezes lugar à aparência de um homem. Era aliás a única filha legítima do então falecido faraó Tutmósis I. Afastada da sucessão ao trono pelo simples facto de ser mulher, realizou um casamento de conveniência e legitimação muito comum no Antigo Egipto: casa com Tutmósis II, seu meio-irmão. Este morre jovem. O filho de Tutmósis II com uma segunda mulher sobe ao trono com oito anos. Hatsepshut assume-se como regente, mas logo afasta Tutmósis III e auto-proclama-se faraó. Apoiado pelos funcionários, o reinado da rainha-faraó termina, longos vinte anos depois, com o regresso dos militares e de Tutmósis III ao poder (que a rainha não havia eliminado).

Tutmósis III apressou-se a tentar apagar a memória da rainha, mas Hatsepshut deixou obra de monta pois dedicou o seu reinado, quase por inteiro, à reconstrução de um Egipto devastado pela sede de mais conquistas.

O Templo de Milhões de Anos, como também é conhecido o Templo de Hatsepshut é um modelo impar na arquitectura egípcia. Dedicado aos deuses Amon, Hathor, deusa do Amor e Anúbis, deus dos Mortos, foi edificado em ordem à concepção impar de Senenmut, ministro e provavelmente amante da rainha. Tal como o da rainha, o seu nome foi apagado da história por um longo período de mais de três mil anos.

O templo revela-se-nos belíssimo. Principalmente ao longe, nos seus três andares imponentes na sua suavidade. As rampas de acesso aos andares superiores vão-nos dando a conhecer um pouco da história de Hatsepshut e principalmente da sua legitimação, a partir de um episódio que retrata a sua própria concepção: Ahmose, mãe de Hatsepshut é possuída pelo deus Amon-Rá que toma a aparência de seu pai, Tutmósis I. Após a únião sexual, Amon revela a Ahmose que deste acto nascerá o futuro faraó que governará todo o Egipto.

Representada neste belo Templo está também uma expedição à região de Punt, algures nas costas da actual Eritreia. Hatsepshut ordenou esta expedição pacífica e comercial que permitiu ao Egipto importar diversas riquezas como incenso, ébano, marfim, animais exóticos, mirra e em troca fornecer armas e algumas jóias. Ainda hoje são recordadas as árvores de incenso que foram transportadas de Punt (eram regadas durante a longa viagem) e replantadas em frente ao Templo.

A caminho do navio, parámos para fotografar os hoje completamente desenquadrados e muito desgastados Colossos de Memnon.


Na realidade, estas colossais figuras humanas, que pesam cerca de 1300 toneladas, eram as guardiãs (representando o próprio faraó) do templo de Amen-Hotep III. Mas guardam o nome de um herói grego: Memnon, filho de Eos, deusa grega da aurora. Zeus, deus grego, concedera-lhe a imortalidade após a sua morte na homérica Guerra de Tróia. Na sua nova vida, todas as manhãs, Memnon chamava ou cantava por sua mãe. A estátua esquerda, após um sismo, todas as manhãs, emitia um silvo, que diziam ser esse chamamento eterno e cíclico. Até ao dia em que um imperador romano (como todos os imperadores romanos-desmancha-prazeres) restaurou a estátua e esta nunca mais cantou.

Este encanto que guarda a mitologia grega é diametralmente oposto ao desencanto que sentimos ao olharmos para estes gigantes. O templo, enorme, sumiu pela erosão e pela remoção de materiais para servir outras construções menores e com ele o encanto egípcio daquele local.

Uma coisa é certa. Se fosse para olhar aqueles blocos, ficaria em Lisboa a ver o Canal História.


Regressámos ao navio e jantámos a caminho da nossa próxima paragem: Edfú...
















Bruno Pestana
Julho 2009
Luxor, Egipto

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